Trabalho na Economia da Ciência, Tecnologia e Inovação. Desde 2014 que a minha principal linha de trabalho é investigar o nascimento e o desenvolvimento de abordagens científicas e tecnologias. A minha veia de investigador não me permite avançar com certezas sobre o futuro. Não sei qual será o futuro da fotografia após a inteligência artificial. Acredito que a sociedade é complexa, dinâmica e repleta de inter-relações. Debaixo do guarda-chuva científico não posso fazer previsões determinísticas.
A minha premissa é simples: devemos aceitar a nossa incapacidade de prever o futuro, especialmente a médio e longo prazo. Não sabemos quais descobertas científicas surgirão, se serão escolhidas em detrimento de soluções concorrentes, se serão implementadas no mercado, se serão aceitas pela sociedade. Ainda nessa linha, uma vez que estamos interligados com as ações de bilhões de pessoas, pouco podemos fazer quanto às influências que sofreremos. Os dados lançados pelo universo esporadicamente provocam ondas de mudanças que arrastam multidões. Será que a inteligência artificial provocará esse tipo de mudança? Da mesma magnitude do motor de combustão e do motor elétrico? Não me arrisco a tentar definir o futuro, principalmente por aceitar que a economia é um sistema complexo. Contudo, a indústria que tenta vender soluções de IA afirma, em tom propagandista, que a IA vai mudar o presente e o futuro. Veremos, mas já manifesto uma certa desconfiança em relação aos modelos probabilísticos das ações do passado como solução para definir o futuro.
Partindo do princípio que os meus leitores não desejam ler um manual técnico sobre métodos de prospecção e trajetórias tecnológicas, deixo algumas impressões sobre a influência da inteligência artificial (IA) na fotografia. A fotografia é uma atividade à qual me dedico como entusiasta, principalmente a fotografia química (analógica).
Minha atenção na fotografia está fortemente focada na dimensão documental, na qual os fotógrafos utilizam imagens para expressar suas reflexões sobre seres humanos, sociedade e natureza. Um pressuposto dessa reflexão é a confiabilidade da informação. Embora não haja o rigor da atividade científica, na qual revisores anônimos avaliam o trabalho (revisão dupla cega), existe um pacto de confiança entre o fotógrafo e os demais envolvidos no processo de elaboração do material fotográfico (geralmente livros). A fotografia documental e o fotojornalismo, áreas irmãs, são a expressão dessa relação. Um exemplo de rigor com a informação é a revista National Geographic, que chega ao extremo de não permitir que o fotógrafo exclua imagens do cartão de memória. Esse pacto social de confiança no qual a indústria da fotografia documental e fotojornalística estava ancorada foi estremecido pela IA, apenas pela ampliação da possibilidade de gerar e editar imagens.
A edição de fotografias não é um problema em si, pois já existem, desde os laboratórios analógicos, técnicas e processos químicos para ajustar o contraste e realizar pequenos ajustes. A questão é que agora as possibilidades trazidas pela tecnologia permitem que até um usuário básico de um software de edição de imagens, como o Adobe Photoshop, realize manipulações com apenas um clique, ou melhor, uma linha de comando (por exemplo: insira uma girafa usando óculos escuros dirigindo uma Lamborghini conversível ao fundo da fotografia). Como saber se uma fotografia é fidedigna com a realidade? A desconfiança atinge duas dimensões: a) autenticidade de sua concepção e b) edição utilizada para chegar ao resultado final. Não acredito que o progresso tecnológico permitirá concessões à indústria fotográfica; aqui, caberá adaptação para sobreviver.
O fotógrafo Jonas Bendiksen explorou esse tópico de forma excepcional. Em 2021, ele publicou o livro The Book of Veles, um trabalho repleto de imagens sintéticas fabricadas digitalmente. Bendiksen publicou seu livro como um trabalho documental clássico, apresentou-o em um festival de fotojornalismo, e mesmo a audiência especializada não questionou a autenticidade das imagens e da narrativa fictícia. Para revelar a verdade, o autor criou um perfil falso no Twitter para denunciar que as imagens eram falsas. Após diversas tentativas, ele conseguiu convencer algumas pessoas anonimamente de que as imagens eram fabricadas digitalmente. A pegadinha gerou desconforto na indústria, mas foi um meio necessário para exemplificar o poder da desinformação gerada por conteúdo manipulado.
O rigor da indústria fotográfica com a situação que está sendo fotografada é exemplificado no livro Bang Bang Club, de Greg Marinovich e João Silva. Apesar de não conter muitas fotografias, os autores contam como os fotógrafos que documentaram o apartheid na África do Sul viveram intensamente as diversas dimensões do terrível conflito social.
Já no campo dos livros fotográficos clássicos, aqueles com muitas fotografias, quero destacar alguns trabalhos que considero exemplos de execução:
- Claudio Edinger - Carnaval;
- Claudio Edinger - Loucura;
- Guilherme Christ - Fissura;
- Marcelo Buainain - Índia, Quantos Olhos Tem uma Alma.
Claro que existem muitos outros trabalhos impecáveis! Tenho apreço especial por aqueles de: Abbas Attar, Araquém Alcântara, Evandro Teixeira e Sebastião Salgado (perdi a conta). Talvez tenha existido uma boa escola de fotografia documental, a agência Magnum.
Ainda tentando analisar o papel da AI na fotografia, quero abordar como ela impacta a fotografia conceitual.
Apesar do meu anunciado entusiasmo pela fotografia documental, o final da minha terceira década de vida despertou um olhar de admiração pela criação e inventividade humanas. A fotografia com arte é um desses campos que passaram a me cativar. A fotografia conectada à criação artística em si, na qual o compromisso com a transmissão da mensagem não está relacionado ao rigor da realidade, permite uma camada de subjetividade. A beleza nos leva a uma dimensão em que o compromisso pode ser apenas a viagem. Destaco alguns fotógrafos que dialogam com essa beleza artística:
Fotógrafos | Impressões |
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Alain Laboile | Escultor antes de fotógrafo, registra cada imagem de ângulos que captam a essência da infância dos seus 6 filhos. |
Alexey Titarenko | Mostrou paisagens urbanas via imagens de longas exposições na Rússia. |
Andreas Gursky | Explorou os padrões do mundo com fotografia colorida de grandes dimensões de arquitetura e paisagens. Usa um ponto de vista elevado para fotografar, e dialoga com a globalização. |
Annie Leibovitz | Retratos não usuais, principalmente de pessoas famosas. Criou tendências, como gestantes nuas (Demi Moore de 1991), e Whoopi Goldberg na banheira de leite. |
Bastiaan Woudt | Retratos em preto e branco com formas como destaque. |
Graciela Iturbide | Fotografou sobre morte e populações indígenas. |
Mário Cravo Neto | Fotografou a beleza negra brasileira com retratos artísticos. |
Martin Parr | Desenvolveu uma fotografia cotidiana, colorida e sempre sarcástica, gerando antagonismo ao modelo fotográfico da Magnum. |
Michael Kenna | Paisagens abstratas, geralmente quadradas, em impressões pequenas, onde cabe ao leitor identificar o sentido da fotografia. |
Josef Koudelka | Utilizou fotografias abstratas e tristes, fotografando ruínas humanas, soviéticas e do capitalismo. Pricipalmente na segunda metade de sua vida. |
Viviane Sassen | Trabalho com cores vivas em luzes duras, sombras e espaços vazios na África. Explorou uma beleza africana particular, associada ao sol. |
Na minha leitura, a inteligência artificial não vai gerar um trabalho que concorra com a arte fotográfica no nível dos autores e dos trabalhos apresentados. Ela não saberá explorar as nuances das relações sociais e humanas nem contextualizá-las em expressões artísticas. A beleza da criação, da criatividade e da inventividade é um lampejo do divino. Agora, o que pode acontecer é uma grande bagunça gerada pelo acesso a trabalhos de baixo nível, gerados ou auxiliados pela IA. Meu medo é o efeito mercado de limões de Arkelof, no qual, apesar de haver vendedores e compradores para os produtos de alta qualidade, eles não conseguem se conectar devido ao grande número de produtos de baixa qualidade (os limões). Nesse cenário, a grande quantidade de trabalhos fotográficos de baixa qualidade acaba por expulsar os de alta qualidade.
Será que teremos capacidade para financiar e possibilitar o acesso ao mercado dos trabalhos fotográficos que exigem anos de investigação e execução? Se a resposta a esta simples pergunta for negativa, o cenário será pessimista. Para dar uma sobrevida a fotografia na sua essência precisamos de circuitos de divulgação. Precisamos também educar a nossa audiência sobre a riqueza do trabalho fotográfico bem executado. Não conseguiremos chegar a uma audiência mais vasta sem as redes sociais. Não sei exatamente como, mas é necessário aumentar o número de pessoas que conhecem a edição, o sequenciamento, a escolha do papel, as fontes, entre outras artes ocultas.
O meu lado economista (e otimista nato) sugere uma perspetiva menos pessimista. Como a economia é um sistema baseado em retroalimentação, podem surgir efeitos inesperados. Não duvido que tenhamos um efeito colateral inesperado: o regresso de soluções em que é possível garantir a confiabilidade do processo. Em outras palavras, será possível um cenário em que a fotografia pasteurizada seja substituída pela fotografia química? No que se refere à fotografia comercial para aplicações diversas, isso é pouco provável, mas para a fotografia de nicho, acho possível que esse cenário ocorra. Que tenhamos cada vez mais retratos feitos pela fotografia analógica, e assim sucessivamente.
Por fim, quero me referir àqueles fotógrafos que pagam boletos no final do mês com o fruto do seu trabalho. Estou me referindo àqueles que não fazem trabalhos longos de uma década, como o ícone Sebastião Salgado. Eles serão afetados pela inteligência artificial? Acredito que o principal efeito é a facilidade na aplicação e manipulação de imagens, o que facilita a entrada no mercado. Utilizar o Adobe Photoshop nunca foi tão fácil! No fim, qual o papel da técnica para se estabelecer como profissional no mercado? Ela será mais importante que saber o que fotografar ou que as habilidades sociais necessárias para captar e satisfazer clientes?
Gastei muito tempo escrevendo, estou com fome, e essa é uma boa desculpa para esperar um pouco mais para observar os desdobramentos futuros.